Resgate na Chuva

Discussão em 'Relatos de Viagens' iniciado por Rocha, 14/3/17.

  1. Rocha

    Rocha Moderator Moderador

    Outubro de 95. Eu escalava há um mês e era a terceira vez que ia para o Baú. Como ainda não estava contaminado pelo vírus da escalada, passei a manhã de sábado em um pesqueiro de trutas que fica a +- 5Km da Pedra, em São Bento do Sapucaí. Logo após o almoço, retornei com o ingrediente do nosso jantar, pensando em escalar durante a tarde. Uma chuva começou a agourar meus planos. Chegando ao abrigo, aguardei o pessoal chegar, e fiquei sabendo que dois dos companheiros haviam sofrido quedas, na Ensaio de Orquestra.
    A Ensaio é uma via que requer muito braço. O Hélcio caiu três vezes(escalava há dois meses), e o Taka, após trocarem as posições, escorregou quando tentava corrigir a costura no penúltimo grampo. Como iniciou a chover, resolveram deixar as costuras na rocha para resgatá-las no dia seguinte.
    Choveu a noite toda, e a manhã seguinte indicava que continuaria assim o dia todo. Após o café da manhã, resolvemos que o Hiroji, o Fábio e eu iríamos buscar os equipos. Capa de chuva, OK. cadeirinhas e cordas, OK. Já estávamos saindo quando:
    _ Esperem, eu também vou.
    Era o Chico, ainda mastigando um pedaço de pão, de bermuda e camiseta, insistindo para nos acompanhar. Olhamos para os trajes dele:
    _ Você não está com frio ?
    _ Não, e só tenho esta roupa.
    _ Então não vai.
    Mas, teimoso como ele só, e sendo um dos mais experientes, acabou nos convencendo que poderia seguir conosco.
    Seguimos pela trilha que leva à escadinha do lado de Campos, e quando a avistei, deu vontade de sugerir subir pela pedra mesmo. Aquilo sugere uma falsa segurança para um escalador. Afinal, nós sempre estamos encordados, e na escadinha qualquer queda pode levar várias pessoas para baixo.
    No meio da subida, o Hiroji começa a sentir problemas com a asma. Paramos várias vezes para que retomasse o fôlego, e chegamos sossegados ao topo da pedra. Descemos uma trilha até o final da ensaio, armamos uma ancoragem em torno de algumas árvores, e eu me ofereci para descer. Era o mais leve, menos cansado e ainda não havia sentido a rocha. O Chico argumentou que o resgate iria requerer mais experiência, e ele desceria. E assim o fez. Tirou a capa, que atrapalharia o rapel, e foi.
    A primeira costura foi fácil. Sendo uma via em negativo, as outras vão se tornando mais difíceis de serem retiradas, pois tem-se que balançar a corda para chegar até elas. O Fábio tirou o relógio do pulso e o colocou em um galho. O termômetro acusou 1,8 graus (isso mesmo, menos de dois graus !). Quarenta minutos depois, a chuva continuava e o vento soprava com mais força. A comunicação com o Chico já estava bem difícil, e ele acabara de conseguir alcançar a segunda costura. Mais vinte minutos, e diante do silêncio do Chico, o Hiroji grita:
    _ Chicoooo, conseguiu ?
    _ Não.
    _ Como você está ?
    _ Maaal...
    Havia um filete de água bem sobre ele, e o frio estava intenso, de modo que não conseguia sequer abrir a trava do mosquetão. Concluímos que ele precisava ser resgatado. Desceu mais um pouco, até um platô, e o Hiroji desceu com o anorak do Fábio. No caminho pegou a costura que deu tanto trabalho. Quando alcançou o Chico, desfizemos a ancoragem e soltamos uma corda para eles, ficando com outra corda para nós rapelarmos pela via conhecida como Cresta. Daí para diante foi tranquilo. Pegamos a trilha com o Chico tremendo feito geléia, e chegamos ao abrigo às quatro horas. Havíamos levado seis horas para esse resgate.
    Uma boa sopa com frango e arroz nos reanimou, enquanto tirávamos nossas conclusões: Por mais experiente que fosse (ou melhor, por ser mais experiente), o Chico não deveria ter saído sem vestimenta adequada. Praticamos um esporte que exige respeito pelas coisas da natureza, seja frio ou calor. Os procedimentos de segurança foram observados, mas havíamos deixado de pensar pelo conjunto. De ver se todos estavam de fato aptos para sair nessa missão.
    Hoje levamos muito equipamento para eventualidades, as ditas "Dez Essenciais e um pouco mais". Alguns ítens ficam permanentemente em minha mochila (caso do blanket, que já usei no Dedo de Deus, assim como no Pão de Açúcar). E sempre avaliamos as condições de todos (é mais fácil ver problemas nos outros, na maioria das vezes).
    Vamos nos divertir, mas com segurança. E ela começa no momento que nos preparamos para sair e encarar a montanha.

    Por... Massa
    Fonte: http://www.reocities.com/yosemite/6474/bau01.htm
     

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