Aprendendo a Não Voar

Discussão em 'Relatos de Viagens' iniciado por Rocha, 14/3/17.

  1. Rocha

    Rocha Moderator Moderador

    9,8 Metros por Segundo ao Quadrado
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    Não me lembro ao certo se ele teve tempo de gritar ou não, mas esse detalhe não importa muito. O fato é que uma súbita aceleração de 9,8 m/s2tomou conta do corpo do Hsu, meu companheiro de escalada. Ele estava caindo.

    9,8 m/s2 – a aceleração da gravidade, implacável, tratou de elevar rapidamente a energia cinética do Hsu. Pendurado sob um pequeno teto, uns seis ou sete metros abaixo dele, eu manejava a outra ponta da corda, garantindo a segurança enquanto ele escalava. Mas agora, ele estava caindo. Em uma situação como essa, só me restava travar a corda e aguardar que ela esticasse, freando a queda. A corda esticou. Um tranco me jogou para a direita e – surpresa – ele não parou. Alguma coisa pareceu se soltar da pedra acima, mas estava escuro demais para que eu a identificasse. Hsu continuava despencando parede abaixo. Um... dois... três... quatro... cinco... seis metros... Agora, eu já não tinha mais dúvidas. O objeto que voou era um nut, um dispositivo de ancoragem móvel. Ele estava arrancando as proteções. Tinha iniciado uma queda em zíper!

    9,8 m/s2 – a corda esticou novamente. Outro puxão me jogou, pela segunda vez, para a direita. Mais um objeto inidentificável voou na quase escuridão. E Hsu continuava caindo. Sete... Oito... Nove metros... O efeito zíper é um dos fenômenos mais temíveis que podem ocorrer em uma escalada. Acontece quando o guia erra na colocação dos dispositivos de proteção, deixando-os em uma posição tal que a corda pode, em caso de queda, ir arrancando todas as ancoragens, uma a uma. Se a queda não for freada em algum ponto sólido de proteção, o sistema inteiro pode entrar em colapso. No nosso caso, se isso acontecesse, despencaríamos mais de cem metros, até o pé do paredão de pedra que escalávamos.

    9,8 m/s2 – a queda parecia não ter fim. Dez... Onze... Doze metros... O que sobraria do Hsu depois de tudo isso? Ele já havia passado pelo ponto onde eu estava pendurado e seguia descendo, agora abaixo dos meus pés. E se a base não agüentasse? A base era uma ancoragem supostamente reforçada. Era formada por três entaladores de mola presos em uma fenda horizontal abaixo do teto. Uma fita equalizava a carga entre esses três pontos, sustentando um largo mosquetão. Era nele que eu estava pendurado, e era nele que todo o nosso sistema de segurança se apoiava. A partir da base, a corda seguia para a direita, passando por alguns pontos intermediários de costura, até chegar à cadeirinha de segurança do Hsu, onde estava presa a outra ponta. Se a base não agüentasse, seria o fim para nós dois.

    O sol já tinha se escondido no horizonte. Um brilho avermelhado tingia as nuvens sobre a cidade de São Bento do Sapucaí, alguns quilômetros distante de nós, no fundo do vale. Era o final de um dia intenso de escaladas no conjunto Pedra do Baú, no Outono de 1996.

    Mixto Quente
    Começamos nosso dia de escaladas de manhã cedo, na via Mixto Quente, na face sul do Bauzinho. Classificada como sexto grau quanto à dificuldade, é uma escalada para guias corajosos, com proteções espaçadas e grampos difíceis de encontrar. Hsu guiou decididamente, seguindo os passos de uma outra dupla de montanhistas que entrou na parede antes de nós. Na confortável posição de segundo na cordada, eu pude me deliciar com a escalada sem me preocupar com uma eventual queda.

    Mixto Quente é uma via relativamente recente. Foi conquistada em 1994 por Reinaldo Kaizuka e Thomas Papp. Como muitas das vias modernas do Baú, ela combina lances de fenda, onde se usam dispositivos de ancoragem móvel para proteção dos escaladores, com trechos de face, onde o sistema de segurança é montado em grampos permanentemente instalados na rocha. Nossa próxima escalada, ao contrário, era uma via clássica, a Corneto. Conquistada por uma equipe do Clube Alpino Paulista nos anos 80, ela foi totalmente grampeada, mesmo tendo boas fendas para uso de proteção móvel. Hoje, a grampeação ao longo de fissuras é considerada anti-ética pela grande maioria dos escaladores. Na época, porém, o equipamento disponível no Brasil era precário e, os conhecimentos técnicos dos escaladores, mais ainda. Isso acabava justificando o uso de grampos nessa situação.

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    Hsu, porém, preferiu ignorar os grampos e guiar a via inteira apenas com entaladores, dispositivos de proteção que são encaixados nas fissuras pelo guia e retirados pelo segundo escalador da cordada. Classificada como uma via de quinto grau, a Corneto tem seu lance-chave em um diedro negativo, onde um perfeito posicionamento do corpo o bons braços são essenciais para se completar a escalada. Subimos sem problemas, olhando com certo desdém para os enferrujados grampos do CAP que Hsu havia alegremente desprezado.

    Aprendendo a Voar
    Learning to Fly, outra via clássica do conjunto Pedra do Baú, tem um importante significado histórico para os escaladores paulistas. Classificada também como quinto grau, ela foi a primeira via da região conquistada sem o uso de grampos. Foi para ela que nós nos dirigimos depois de terminar a ascensão da Corneto. Normalmente, a escalada é feita em duas enfiadas de corda. A primeira, uma fenda descendente, passa abaixo de dois pequenos tetos e continua até encontrar um diedro. Nesse ponto, é feita uma parada e começa a segunda enfiada de corda, que sobe em linha reta pelo diedro. No final dele, mais dez metros de face, sem proteção, levam à primeira parada da via Normal do Baú.

    Um belo pôr do Sol começava a se desenhar sobre São Bento do Sapucaí quando Hsu e eu decidimos iniciar mais essa escalada. Nosso amigo Reinaldo Kaizuka passou por nós e avisou: "Vocês têm meia hora de luz, quarenta minutos no máximo". Confiante depois de duas ascenções muito bem sucedidas, Hsu resolveu entrar na Learning to Fly assim mesmo. Como era ele quem iria guiar, não me preocupei muito. Ele guiou sem problemas a primeira enfiada, mas preferiu montar a parada uma pouco antes do pé do diedro, sob o segundo tetinho. Eu também cheguei tranqüilo até esse ponto, mas a iminente escuridão começou a nos pressionar. Se houvesse algum observador por perto, ele notaria um certo nervosismo em nós. Havíamos deixado nossas lanternas nas mochilas, perto do início da via. A possibilidade de ficar à noite no meio da parede não era nada agradável. Tínhamos que ser rápidos.

    Na Penumbra
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    A Learning to Fly foi conquistada em 1988 por Alex Cymbalista, Hugo Armelin e Werner Bilfinger. Durante a primeira ascenção, os conquistadores martelaram três pitons nas fissuras do diedro que forma o trecho inicial da segunda enfiada de corda. Com o tempo, esses pitons foram se enferrujando e se soltando das fendas. Restou apenas um, o primeiro, alguns metros acima do ponto em que a a via começa a subir pelo diedro. Quando Hsu começou a negociar o diedro, ele instalou um pequeno entalador de mola em uma fenda estreita e, um pouco mais acima, prendeu uma costura ao piton. Torto e enferrujado, esse dispositivo de ancoragem não inspirava muita confiança.

    Depois do piton, a via sai para a direita, seguindo por um conjunto de fendas que sobe paralelamente à fissura principal do diedro. Com pressa e enxergando mal por causa da pouca luz restante, Hsu acabou errando o caminho. Ele subiu em linha reta, ignorando o desvio para a direita. Chegou a um trecho bem vertical da parede, onde sentiu falta tanto de apoios para escalar como de fendas para instalar a proteção. Costurou a corda em um entalador de mola precariamente posicionado e depois em um nut mais ou menos preso a uma fenda rasa. As coisas começaram a ficar complicadas. Como o nut estava perto, Hsu não estava muito preocupado pela possibilidade de uma queda. E caiu.

    continua...
     
  2. Rocha

    Rocha Moderator Moderador

    Perdas e Danos
    Depois de despencar por 12 metros parede abaixo, Hsu estava pendurado uns seis metros abaixo dos meus pés, na parte inferior do diedro. Quando nosso sistema de segurança finalmente conseguiu frear a queda, meu primeiro olhar foi para a ancoragem de base. Parecia em ordem. O segundo olhar foi para o escalador caído. Perguntei a ele como estava. Hsu respondeu que estava bem. Rapidamente, decidimos que eu o baixaria até um patamar um pouco abaixo do ponto onde a queda terminou. Do patamar, Hsu escalou horizontalmente para a esquerda, enquanto eu lhe dava segurança com a corda. De volta à aresta do Baú, onde havíamos iniciado a escalada, ele se ancorou e armou uma segurança para que eu escalasse de volta a primeira enfiada de corda da via.

    Quando cheguei perto dele, sua boca sangrava. Havia quebrado três dentes. Também tinha alguns arranhões a alguns rasgos na roupa. De resto, estava inteiro. Não foi exatamente um final feliz, mas o estrago foi bem pequeno para quem tinha sofrido uma queda de 12 metros. Foi mesmo uma sorte Hsu não ter batido a cabeça, não ter se espatifado em alguma ponta de pedra. Na manhã seguinte, voltei à Learning to Fly com Reinaldo para recolher o material que Hsu e eu havíamos abandonado na parede. Examinamos com cuidado as ancoragens enquanto escalávamos a via e chegamos a algumas conclusões:

    1. Duas ancoragens - um nut e um QuadCam - haviam se soltado durante a queda por estar mal colocadas.
    2. O que segurou a queda foi o piton - o velho, torto e enferrujado piton instalado pelos conquistadores em 1988.
    3. Mesmo que o piton tivesse se quebrado ou fosse arrancado da fissura, a queda seria freada mais abaixo, já que todas as outras ancoragens estavam corretamente instaladas. Logo, não houve efeito zíper e nem havia risco de isso acontecer.
    4. A ancoragem de base estava bem montada. Não havia risco de colapso do sistema de segurança por falha nessa ancoragem.
    Se Hsu tivesse montado a parada na base do diedro, talvez ele tivesse me atingido durante a queda. Felizmente, a parada armada abaixo do segundo tetinho ficava fora da linha de queda. Essas observações mostraram que nós não cometemos nenhum erro grave quanto ao sistema de segurança. O verdadeiro erro foi ter entrado na Learning to Fly naquele momento. Estávamos cansados, estava escurecendo e nenhum dos dois conhecia bem a via. Aquela escalada tinha que ter ficado para o dia seguinte.

    Maurício Grego - setembro de 1996
     

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