Um segundo que pode mudar toda a vida

Discussão em 'Relatos de Viagens' iniciado por Rocha, 22/6/17.

  1. Rocha

    Rocha Moderator Moderador

    Comecei a me acidentar muito cedo, mais precisamente aos 16 anos. Foram 22 anos competindo nas mais diferentes modalidades motorizadas em duas e quatro rodas. Sofri tantas quedas e acidentes que realmente não consigo contabilizar, mas recentemente joguei fora chapas de radiografia e daria pra ver meu corpo todo por dentro. Quebrei vários ossos, mas sem gravidade nem sequelas.

    Para ganhar a vida dessa forma o acidente faz parte e nossa experiência funciona para reduzir as consequências dos acidentes, por meio de roupas especiais de qualidade, equipamentos modernos e até, acredite, técnica para cair sem não se machucar tanto.

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    Descendo a trilha que dá acesso às vias da face norte do Bauzinho.

    Ansiedade x experiência

    Quando parei de correr em 1999, aos 40 anos de idade, descobri na escalada uma atividade esportiva que reúne a adrenalina das competições motorizadas com o bem estar físico. Mas com muita segurança. Sim, tive a chance de conviver com várias atividades “adrenantes” e considero a escalada como extremamente segura, muito mais que qualquer corrida de carro ou moto.

    Mas a escalada exige um grau elevado de concentração e capacidade de planejamento. Eu comparo a escalada a uma partida de xadrez, na qual cada jogador precisa pensar sempre duas, três ou mais jogadas à frente. E que tem um timming lento porque é preciso ensaiar mentalmente cada passo antes de fazer a jogada. Na teoria é lindo! Só que eu nunca gostei de xadrez, sempre preferi gamão porque é mais rápido e ninguém pensa muito, além de ter apostas, claro!

    E foi esta ansiedade que me conduziu ao meu primeiro grave acidente na escalada.

    No dia 8 de julho, espremido entre o domingo e a terça-feira de feriado em SP, o clima estava perfeito para escalar. Sol na medida certa, sem vento, temperatura agradável, perfeito! Como eu tinha acabado de quebrar um enorme galho para o experiente Alê Silva (Casa de Pedra), fiz dele meu sherpa na nossa programação. Escolhi a via e ainda decidi quem iria guiar qual enfiada. Também levei o mínimo de equipamento e fiz ele carregar tudo. Quando saíamos de casa pensei no capacete. Não tinha levado o meu e cheguei mesmo a pensar em não usar porque era uma via de 4º grau, mas lá no meu interior uma voz sussurrou “deixa de viadagem e leva essa porra!” Peguei um capacete emprestado, montamos os equipos e fomos à la rocha!

    A via que eu escolhi foi a Galba Athayde (4º V Sup) porque é tranquila e eu já guiei lá várias vezes, além de bater sol o dia todo. Combinamos de eu guiar a primeira e a terceira enfiadas (justamente dos cruxes) e o Alê guiaria a segunda e a quarta.

    Cheguei na base da via cheio de roupa, fui descascando e jogando tudo na mochila, que se mostraria uma decisão importante. Tudo certo, saí escalando com Alê na seg e foi um passeio. Estou tão acostumado a escalar com ele que e gente quase nem precisa se comunicar nas paradas, mas nós dois sempre nos divertimos e damos muita risada, até da minha falta de alongamento. Algumas vezes preciso buscar a ponta da sapatilha com a mão e encaixar meu pé na agarra e essa “técnica” merece até um tutorial!

    Admito que mesmo após 13 anos escalando ainda fico muito ansioso quando estou guiando. Chega a ser ridículo, porque quero chegar logo na proteção e saio atropelando tudo pela frente. Muitas vezes me pego agarrando um micro cristal quando tem uma agarra monstro 5 cm mais para cima. É o xadrez jogado por quem gosta de dominó!

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    Característica das vias tradicionais da face norte são as proteções bem distantes nos trechos mais fáceis.

    Foi assim que cheguei no primeiro crux, que diria ser um IV Sup, com duas chapas muito próximas. Mas a ansiedade… Assim que percebi que poderia alcançar a chapa, saquei a costura, puxei uma laçada de corda, peguei em qualquer agarra invertida e fui com tudo costurar. Faltavam uns 2 cm pra chegar na chapa quando a agarra quebrou e saí voando de costas.

    Fiquei esperando a fisgada da corda, mas nada… a última chapa estava longe e eu tinha puxada muita corda antes de costurar, um erro típico de um ansioso. Esse crux é o primeiro lance verdadeiramente vertical de uma via que é quase toda positiva. Bati as costas com violência no platô e senti que a mochila amorteceu a pancada, mas minha cabeça foi jogada pra trás, escutei o plástico do capacete bater com força e fui jogado de volta pra cima. Voei de novo girei no ar e bati de peito, com o queixo, boca e dente na pedra. Fui escorrendo e ralando pela parede positiva até parar.

    É incrível o tanto de coisa que passa pela cabeça no momento de um acidente como esse. Já vi o filme da vida tantas vezes que nesse dia passou só os melhores momentos. Depois de anos de experiência com tombos de moto eu aprendi a esperar sempre pelo pior, mas a primeira pancada provocou uma dor excruciante na bacia, que refletiu no tórax e a primeira coisa que pensei foi: “quebrou tudo por dentro, o Alê vai ter de chamar o resgate”. No segundo impacto, de frente, achei que tinha quebrado o nariz, os dentes, maxilar e pior: um trauma torácico.

    Eu só pensava nisso: “putz, se eu morrer aqui vou dar um tremendo trabalho pro Alê, como ele daria a notícia pra minha família? e a comunidade de escaladores? Surgiriam aqueles que sempre dão palpite sem ouvir as fontes, iriam, julgá-lo, acusá-lo e sentenciá-lo sem nem sequer avaliar o acidente. E como vão levar meu corpo? que mão de obra!”

    Pensei nas minhas filhas e na minha esposa e jamais me perdoaria em deixar uma viúva jovem e linda à solta no mercado!

    A experiência de acidentes produz uma rotina que chamo de “relatório de avarias”, logo que o mundo para de girar. Comecei pelos membros inferiores, OK. Braços e mãos, OK e fui me mexendo bem devagar na certeza que alguma coisa muito grave estava pra aparecer. A pancada na coluna refletiu no corpo todo, do pescoço ao calcanhar. Assim que fiquei de pé escutei o Alê perguntar “quebrou alguma coisa?”. E respondi “aparentemente não, mas por dentro devo ter virado um suflê…”

    Quando a gente pára de rir é grave e nenhum dos dois conseguia nem falar direito. Ele me desceu até a base e estava branco e tremendo como se ele mesmo tivesse rolado a montanha. Só consegui responder: “cara, é muito pior que cair de moto!”. Pedi pra ele ver se meus dentes estavam todos lá e aos poucos fui identificando os ferimentos. Pela descrição que ele deu da queda eu estava num tremendo lucro. Nenhum osso quebrado, vários hematomas, um corte no queixo, um pedaço de dente e vários arranhões como um tombo de moto mesmo.

    Decidimos continuar escalando a Galba porque era mais fácil que subir a trilha até o Vicente. Mas ele foi guiando tudo. Consegui até recuperar meu óculos de grau caríssimo que estava numa touceira de mato logo abaixo de onde parei. Foi uma escalada entranha, silenciosa, porque eu ainda suspeitava de alguma coisa estourada por dentro. Fui tomando água para depois ver a cor do xixi, se tiver sangue na urina precisaria parar e chamar o resgate! Como eu sou daltônico, adivinha quem teria de ver a cor do xixi?

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    Tite, assustando os turistas no cume da pedra! O que foi isso?!!! Nada não, é gengivite!

    Meu punho esquerdo estava muito dolorido e tive de usar só a mão direita. Quando cheguei no cume os turistas olharam pra minha cara e a camiseta cheias de sangue e perguntaram o que tinha acontecido. “Nada – respondi – é gengivite!”. Pronto, foi a deixa pra gente relaxar e voltar a rir. Mas eu via que as mãos do Alê ainda tremiam…

    Claro que isso não foi nada perto dos acidentes realmente graves na escalada. Mas depois de ver o estado da mochila e as marcas na cadeirinha e no capacete tive certeza que é muito fácil ver a sua vida se transformar em um segundo de vacilo. Certamente foi o pior acidente da minha vida e não desejo isso pra ninguém, porque despregar da parede e sentir seu corpo voar até bater na rocha faz qualquer um repensar o modo de encarar a vida.

    Como eu tive três horas e meia para refletir sozinho dentro de um capacete, na volta de moto pra São Paulo, foi exatamente o que fiz. A escalada clássica é tradicionalmente mais perigosa porque induz à negligência: cansei de ver gente fazendo a Galba, a Normal do Baú, a Chicken Salad e as vias da Ana Chata sem capacete. Eu mesmo fiz várias vezes. Segundo muito bem definiu o Alê Silva, “numa via clássica você está solando com uma corda, cair não faz parte da brincadeira!”.

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    Local onde provavelmente a corda teve seu ponto máximo de fricção com o mosquetão da costura, durante a violenta queda!

    Por ser fácil leva à desatenção e perda de foco. Quando passei pela segunda vez no local da agarra quebrada tive vontade de me socar, porque bastava subir os pés mais 3 cm e eu alcançaria uma bela e profunda agarra feita do mais puro e secular granito da serra da Mantiqueira!

    Percebi que a ansiedade sempre me acompanhou em todas as atividades e não seria diferente na escalada. Decerto, se mudar a forma de escalar isso se refletirá nas outras atividades. Já refletiu, porque voltei pra São Paulo bem devagar.

    Ficam as dicas: via fácil não é sinônimo de passeio no parque; trate-a com a mesma seriedade que trata uma via de grau alto. NUNCA, mas nunca mesmo entre na via sem capacete e verifique se a agarra é sólida antes de se pendurar nela!

    Não desisti de escalar, sou um velho duro de matar!

    Fonte: link
     
    Daniel Eles curtiu isso.

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